segunda-feira, 2 de março de 2015

AGUARDENTE


Se a inveja viesse em forma líquida, seria uma aguardente. A inveja viria em uma garrafa grande e bonita, sendo que cada garrafa conteria muitos litros de inveja, porque a inveja é tanta que não caberia em uma única garrafa.

No primeiro gole de inveja, a garganta estaria tão seca que beberia sentindo alívio e prazer. Nos próximos, sentiria umas pontadas na nuca – é comum que, no início, a inveja se confunda com algo bom. Quando acontece, pensa-se que todos no mundo são iguais a você, que não tem tempo e nem necessidade de desejar algo alheio. Lá na despensa, se a inveja viesse em um forma líquida, seria em garrafa plástica, tipo garrafa pet, em que se torna descartável após usá-la – é que com o tempo você percebe que o líquido que tanto te dava prazer era só embalagem e nada mais. Lá por dentro, depois que você vira dois ou três goles do líquido, a queimação começa da garganta até o estômago. O líquido explícito e transparente, forma parte da psicodinâmica de algumas dores e traumas escondidos no fundo da garrafa.

Há casos em que, depois do primeiro porre ou de beber do próprio veneno, a inveja se revolta, causando um sentimento de frustração insuportável perante algum bem de outra pessoa. Dói especialmente na nuca, nas têmporas e na testa, a dor na alma vem com tempo e é a que mais pesa e perdura. A cabeça pesa como se estivesse apertada por um daqueles círculos de ferro usados em torturas medievais. O problema é a inocência de quem acredita que somos todos semelhantes, e deveríamos ser. É difícil perceber quando a água é brasa e no soprar pega fogo. A ressaca mora ao lado e você nem sabe. A consciência é a que mais sofre – apesar dela mesma nunca doer. A luz do dia fere os olhos de quem inveja o próximo, qualquer ascensão ao sucesso retumba dentro do ser embriagado de inveja. Na boca, um gosto amargo. Não tem o que quer, mas também não faz nada para conseguir, apenas engrandece os olhos, agoniados, deixando a água imunda escorrer. Para alguns, é difícil tentar perceber que cada um foi feito para viver diferentes destinos, e que a diferença existe para distinguir a capacidade e merecimento de quem sabe o que quer. E quem sabe o que quer vai à luta, realiza e faz acontecer!

A inveja não vem com uma placa que diz "quero o que você tem e eu não consigo ter". O desejo inconsciente de querer ter ou ser o próximo é tão grande que muitas vezes causa rancor contra outros que possuem algo que deseja, mas que não pode obter ou não busca desenvolver. Daí você resolve beber mais e mais ao invés de ir buscar o que não tem. Menos hoje do que ontem, um pouco mais do amanhã do que hoje. Menos atitude, menos coragem até não haver mais nada. Por que a inveja é um mal que retorna. É uma fulga sem saída. Uma ducha solitária com ralo de espelho. Antes de molhar o corpo inteiro, a inveja definha e escorre. Se a inveja fosse boa, ela não caberia nas almas pequenas. Então, os pequinês ficam com a estima baixa, e é possível que ainda olhem a pessoa ao lado e finjam ser o melhor – esta, sim, efêmera ilusão -, obviamente quem engana a si próprio engana o mundo e perde a si mesmo. Essa ilusão muitas vezes está apta a dar o tiro de misericórdia na alma moribunda. E dói. E mata lentamente. O nome disso é despeito. O nome disso é fraqueza. O nome disso é covardia. O nome disso é medo. Até que morra de vez. Enquanto esta aguardente ainda saciar a sede desta gente tóxica, um túmulo é só um túmulo. A inveja já nasce morta. 

Texto: Laila Guedes

Fotografia: Francesco Romoli

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