sexta-feira, 12 de junho de 2009

UM SOSSEGO FORA DE HORA

Ele estava ai, sentado num dia qualquer. Um gole de palavras soltas. Sem razão. Sem lógica. Sem ação. Uma multidão passará ao seu redor. Brancos, negros. Baixos, altos. Homens, mulheres e crianças. Estranhamente, ele se sentia só. Apesar de tantas pessoas ao seu redor, há uma solidão que corrói aquele ser. Os ressentimentos do passado transformarão seu coração numa pedra bruta. E ali estava, sem está, petrificado de alma. Sem amor. Sem calor. Sem a dor. Certa vez, até chegou a pensar que a morte era um bem que lhe cabia. Pensará mais de uma vez que a morte seria um alívio. Viver não é para qualquer um. Viver é mais do que morrer. É morrer e continuar a viver.

A multidão gritava. E ele ali continuava, sentado, isolado. Seus pensamentos solitários foram subitamente interrompidos por um barulho que vinha dos passos... tac... tac... tac. De quem será esse barulho ao caminhar? A pisada é firme num som forte. E a cada passo dado, ele olhava e atentamente escutava, imaginará ser alguém de passo forte. E ele ali sentado vendo aquele passo que passará. E um novo som fez sumir o outro passo. Atrás vinha... inhac... inhac... inhac. Meio desajeitado, aqueles sapatos não caminhava, se arrastava pedindo socorro. E ele mal escutava, apenas imaginará ser alguém de fraco passo... tac... inhac... tac... tuc... nhac... tum... tac... inhac... e passa um e outro, e mais outro, e todos os outro ali passará ao seu lado. Ele continuava a se sentir sozinho, ao seu lado um copo de cerveja o acompanhava. Mesas e cadeiras numa vida vazia. Naquele copo o refúgio de uma vida cheia de agonia. A sua frente, um pouco distante, meio fraco, mas ele escutará um som mais suave. E no meio de tanto passo, ele reconhecia o som daquele sapato que o chamava. Um horizonte. Um pecado. Uma melodia. Uma canção suave de um sapato alto. Nem mesmo o agonizante barulho daquela multidão conseguiria abafar o som daquele sapato, fino, elegante, o seu som era mais alto do que todos os outros daquela multidão. Ele morreria por aquele som alto. Ele desejava se deitar naquele chão frio e nojento, só para ser pisado por aquele sapato alto.

Era eu, Cristiane, que já havia o avistado a segundos atrás. Com meu jeito indiferente, sorriso marcante e encantador. Um mistério. Um vôo imprevisível. Um risco bom de arriscar. Um segredo de mulher que havia estreado aquele boteco da Vila Fátima. E a um passo do meu sapato, estava ele que só sabia sentir medo de mim. Sentia medo de toda aquela agonia que o agonizava. Ele não gostava de perder o controle, e aquelas sensações instáveis o fazia crer que havia perdido o controle de seus sentidos. Ficará sem graça, e ligeiramente abaixará o olhar escondendo o que ele não queria ver. Desejava sumir, desaparecer. Tentou pensar em algo para fazer desaparecer aquelas sensações sem controle. Bebia ligeiramente a cerveja, virando copo após copo. Desejava coragem. Ela era maior, apesar de sua estatura baixa, mais inteligente, apenas de ser uma humilde costureira. Mas para ele, eu era sua, apenas sua, e sua Cris sempre foi e sempre será mais e mais. E eu nem era isso tudo, somente em sua mente eu era única.

Virou um copo inteiro, aliviando a sua garganta seca, aquele líquido gelado descia como um alívio de uma vida vazia e cheia de temores. Ele torcia para não ser percebido. Desejará naquele momento ser o homem invisível, mas para mim era um homem incrível. Não sabia o quanto tinha, ele não se conhecia, mas eu o reconheci e nada adiantou. Eu invadi os seus pensamentos, entrei no seu nada enchendo aquele ser com minha intensa agonia. Reagi meio inconsciente, com o meu jeito imprevisível de ser eu sorri e vi seu rosto avermelhar. Caminhei ao som do meu passo alto. Aproximei-me e o olhei profundamente em seus olhos. Eu sabia, eu sentia, ele não esperava me encontrar por ali. Meio sem graça, rosto avermelhado, olhos inchados pareciam ter chorado uma noite inteira sem dormir. Talvez ele sofra de insônia. Ou talvez ele sofra por não conseguir amar. E ele fugia. Anos atrás já fazia de tudo para me perder de vista. Mas lá estava eu, linda e aparentemente feliz. Sempre sorrindo, eu sabia amar e ele sentia medo de amar e ser feliz, por isso fugia de mim. Aquele medo era uma mania que ele tinha desde infância. Sempre foge de qualquer coisa que tenha indícios que o faça enlouquecer.

Para conservar uma forma de caminhar, eu gentilmente o cumprimentei. E só imaginava e sentia a minha grande alegria de viver. Bebia e absorvia a minha felicidade. Aquilo tudo o fazia mais feliz. Ele não me desejava como mulher. O meu sorriso fazia um bem enorme ao seu ser. Eu como uma luz, um alívio, uma satisfação, havia transformado aquele instante numa eternidade de satisfação. um sono. Um sonho. Um canto de encantos. Mesmo sem tocá-lo, ele sentia seu corpo estremecer. Uma agonia incontrolável, não conseguia ter mais controle sobre si. Pedia ao garçom mais cerveja. E ali bebia e contava... uma ovelha, duas ovelhas, três... mas meu sorriso o atrapalhava, o confundia mais e mais naquela agonia. Tentará disfarçar, desviava o olhar, implorava por distância. E o vermelho já tomara conta de todo o seu ser, suas mãos congelavam, a voz quase não saia, tentou até sorrir através do meu sorriso para disfarçar o seu arrependimento. Ele só bebia e tremia. Desejava, sem desejar. Ele corria contra aquele passo forte. Sentia medo. Medo de amar e se entregar.

Havia uma mesa vazia ao seu lado, onde sentei-me bem próxima aquele medo. De certo que ele não sabia, nem percebia que aquele meu jeito seguro era puro disfarce, eu também sentia medo tanto quanto ele, talvez até mais. Ali, junto ao nosso incontrolável medo, sentia uma coisa. Algo que ainda não sei bem o que era, apenas sentia. E todo aquele sentimento me modificava. Renovava a minha energia, como algo novo no ar que se aproximava sem saber bem o que. Sofro com minha intuição, ainda não aprendi a entendê-la. Apenas sinto algo no caminho, sinto sem conseguir ver o que virá pela frente. Ali sentada, apenas sentia, olhava poucas vezes para ele, apenas sentia uma coisa. Tenho medo, sinto medo de sentir medo. E confesso que não gosto de sentir medo, isso tudo me intriga e briga com minha razão de querer entender toda aquela situação mergulhada num mundo de sensações estranhas e desconhecida.

Fazia com que ele pensasse que eu era maior, mesmo sem ser. Assim eu me sentia mais segura. E se tinha uma coisa que eu sabia fazer bem era disfarçar. Meu sorriso era grande, apenas ele era. Eu disfarçava bem todo aquele momento que me parecia ser mais uma eternidade. E assim como ele, eu também fugia, e me condenava por sentir algo estranho e sem controle. Éramos dois inconseqüentes e imaturos. Tolos, bobos, escondíamos o melhor de nós dois. Logo eu que sai do casulo há poucos dias. Uma adolescente que não conseguia controlar os pensamentos que iam e viam, outrora faziam parte dos pensamentos de meu Zé. José Marcelino, famoso arquiteto, fazendeiro, rico e de boa aparência. Homem elegante, nobre, moreno, alto. Ele tinha um grande poder sobre mim. O único que me levou a um lugar diferente bem próximo ao céu. Agora nem sinto mais meus pés tocarem aquele chão frio. Lembro-me somente das noites onde as estrelas são mais brilhantes e o ar é mais suave. Meu Zé tinha aquela mania de revirar coisas do nosso passado, e volta e meia estamos ali revivendo o que passou. Éramos infantis juntos, de certo que não sabíamos quem enganava quem. Se ambos tínhamos uma mania incrível de se esconder do futuro, deixando o presente sem vida.

Agora mais madura, mais mulher, tudo o que vivi sem ele foram os que tentaram se aventurar em meu céu, sem saber que existem lugares em que poucos podem morar. Minhas recordações foram interrompidas com a chegada do meu pedido, uma pizza de quatro queijos, a minha preferida. Respirei fundo e coloquei minha cabeça para fora pra enxergar melhor, mas acho que é uma fantasia. Talvez aquele Zé seja nada mais do que um mero Zé, um Zé Mané, um Zé qualquer. Cheguei até ouvir alguém pronunciar o nosso nome, e me soou como um casal de perfeita sintonia, daqueles que aparentemente não se combinam. Eu baixinha e ele tão alto. A minha alegria o confundia, e fazia com que o medo ganhasse mais força, tornando-se uma ameaça a nós mesmos. E comia aquela pizza e relembrava dos nossos momentos, onde eu vivi e virei arte de um único ser. No simples ato de viver, como caminhar sem pressa de chegar, como ficar em casa o dia inteirinho e ficar um olhando pra cara do outro, sem dizer uma palavra. Toda aquela nossa simplicidade engrandecia o nosso ser, até esquecíamos que sentia medo um do outro. Assim conseguíamos ser feliz, escutando um apelido carinhoso que era o seu reflexo do meu olhar. O José Marcelino era dono de tantas fazendas, mas a sua maior riqueza era o seu abraço alto. Ele não se importava com dinheiro, aliás, nem sabia administrar, gastava, engordava e me amava.

Eu recordei ao comer o último pedaço daquela pizza, do nosso último dia juntos em que comíamos pizza fria com extrato de tomate na falta do catchup que não conseguíamos encontrar no meio aquela bagunça dos nossos sentimentos. E lá estávamos nós, como uma ironia do destino, juntos novamente. Mexia o meu cabelo pra lá e pra cá. Estava nervosa com minhas lembranças do passado. E ficamos ali, os dois sem dizer quase nada além de um simples oi e aquelas conversas corriqueiras... “quanto tempo não te vejo”, “o que eu tem feito”, “por onde andas que não te vejo”... somente só e mais nada foi dito. Até eu ver a sua conta chegar. Assustei-me, ele iria embora mais uma vez e de fato não iria vê-lo mais. Esses encontros são raros, e quase nunca acontecem, não podia deixá-lo partir mais uma vez e deixar a minha vida naquele abandono. Mas não sabia o que fazer, como agir, e um nervoso foi tomando conta de mim. E veio o medo de perder o que eu já havia perdido tempos atrás. Dias que passeava naquele carro grande, escuro e frio. Recordo-me bem o dia em que perguntei por que ele vivia com aqueles buracos que só saiam um vento frio que congelava os meus sentimentos. Gostaria de sentir o vento na cara, respirar o cheio de mato molhado de seus campos verdes. E cantarolar a nossa música, fazendo declarações que tentava esconder que eram apenas canções quaisquer. Era uma imensa saudade que eu sentia ao vê-lo. Recordações de uma vida que eu vivi. Momentos mágicos e somente meus, eu relembrava do jeito que ele fazia ao me escutar falar das minhas loucuras, mesmo sabendo que meu Zé não entendia nada. Aquele era o nosso mundo, o nosso momento. E eu o amava tanto. Sentia grande satisfação ao esperá-lo ansiosa pela sua chegada, e sentir seu cheiro por toda a casa. Olhar o meu Zé dormir quase sempre primeiro que eu, para somente depois jogar minhas pernas por cima das suas e aproveitar pra agradecer a Deus por ser tão feliz ao seu lado. Um caso ou um acaso. Ali estávamos nós, revivendo um passado que se tornará vivo ao nos encontrarmos novamente. Naquele momento eu só desejava sentir um pouco mais de nós dois, mas ele se despediu friamente e eu disfarcei novamente ao deixá-lo partir. E a gente se escondeu outra vez com medo de se machucar. Ambos sabíamos da nossa decisão de não querer mais arriscar uma nova perda, de fazer novas promessas, jogar fora novas palavras ao vento. E eu ali perdida sem saber o que fazer, nem sei mais me encontrar nisso tudo. Mas eu disfarço e tento salvar pelo menos as lembranças boas. E ali ficou somente eu, o seu copo vazio com o resto do que deixou, e a certeza da saudade que continuará a me matar aos poucos.

Um comentário:

Unknown disse...

Por essas e outras, o Drummond já perguntava: E agora, José?