segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

NO DIA QUE A MENTIRA NASCEU

No dia que a mentira nasceu eu cismei que era verdade e esqueci de me proteger. Meus ouvidos quase sempre são um canal no horizonte toda vez que alguém profere palavras muito bem colocadas. E nesta hora eu sempre tossia um pouco franzindo a testa e arqueando as sobrancelhas, torcendo para que tudo aquilo fosse verdade. Fiquei na dúvida se era verdade ou mentira, então eu fingi um belo sorriso por que o dia amanheceu tão lindo. Que nome tem alguém que tem todos os motivos para dizer verdades, mas insiste em experimentar o delicioso prazer de dizer mentiras?

No dia que a mentira nasceu, fui fazer exame de endoscopia. Enquanto o médico não vinha, as enfermeiras faziam os preparativos para a realização do procedimento. Quando a anestesia adentrou em minhas veias as últimas palavras que consegui escutar, minutos antes de fechar os olhos, foi a enfermeira dizendo que o réveillon é a festa da falsidade, onde pessoas que passaram o ano inteiro sem nem ao menos querer saber notícias suas, te ligam e desejam todas aquelas palavras ensaiadas como quem escuta a fita rebobinando e tocando outra vez. Foi mais forte do que eu, adormeci.
Acordei com o resultado do exame. Ainda sonolenta descobri que estou com esofagite – o tubo que liga a parte posterior da boca ao estômago encontra-se inflamada. Não adquiri falando mentira direta de quem esconde algo ou precisa fugir até mesmo de si próprio. Tudo indica que foi proveniente de sucessoras crises de refluxo. Mas o problema não é o que entra pela boca, e sim o que sai dela. É que escutar mentiras me causa enjoos, e a depender da quantidade, me faz regurgitar.
Foram duas golfadas. A primeira foi tão brusca que escorreu pelas vias nasais, com alguns pedaços do jantar de ontem a noite. A segunda foi mais lenta e rala, mas queimou de uma forma tão intensa que me fez perder a voz. A boca de seca ficou molhada com o gosto de vômito aguado. A mentira me abraçou, apertou a minha boca como era de costume e não me deixou dizer uma só palavra.
Sabes lá quando foi, se no nascer ou por do sol, ou lua cheia em noite escura. Da boca de quem diz nasce o que é não ser, fingir ter, e não ter e nem si quer ser para se doar. É não saber falar, não se entregar. Sem saber que o outro sabe ou acredita saber. Enganar, fingir ser, ou ter. Mentir aprisiona a alma. Corrói por dentro e desanima o coração. Viver nessa vidinha de mentiras, falsidade, medos, só atrai energias ruins. É doença de alma que desce ladeira abaixo.

Contudo, mentir é uma arte tamanha que por muitas vezes nos deixa cabisbaixo e sem saber o que dizer.Pois quem sabe a arte de mentir, acredita até mesmo na própria mentira dita. Finge sentir o que não se sente, mente tão bem que parece até verdade no ouvido de quem consegue ser sincera até consigo mesma.
Eu fui feita para a verdade, mesmo que tenha que ferir-me por tantas vezes escutar tamanha sinceridade. Pois só de sentir a mentira alheia já me desfaleço, a garganta queima novamente. Mantenho-me sempre viva, acordada, alerta e verdadeira. Ativar os sentidos da alma, faz o universo convidar a ter emoções leves.
No dia que a mentira nasceu, eu fiquei sem palavras.
***Crônica para o site www.ativarsentidos.com.br

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