domingo, 31 de outubro de 2010

O que vai por dentro

Em viagem ao interior da Bahia, passando pela polícia federal, o carro de meu pai foi sinalizado para parar. Percebi a agonia que vinha de meu pai, que apenas olhou para o banco de trás onde eu estava sentada e disse: esconda isso. Olhou-me profundamente e deu-me algo enrolado no pano. Quando vi, era uma arma. Pela idade e experiência que tinha, o normal seria ficar nervosa?... apavorada? ...gritaria? Eu nem ao menos lembro quantos anos tinha naquela época, aliás lembro pouco de tudo que ocorrerá. Mas eu sabia o quanto o olhar preocupado de meu pai falará a verdade. Escondi a arma assim como esconderia algo precioso. E comecei minhas orações. Enquanto os policiais falava com meu pai, eu orava, suplicava para que eles não encontrassem a arma. Após abrir os olhos, já estamos todos de volta ao caminho, na estrada da vida. Está foi a primeira vez que vi uma arma.

Tempos se passarão. Ele se foi. A arma? Não sei que fim tomou. Assim como seu olhar. Não há quem possa explicar a morte deste olhar. Entretanto, existe alguma razão para que ela seja a nossa única certeza, ao passo que é um grande mistério.

Esses dias voltei a ver a arma e o olhar. Despertai-me-ei lembranças adormecidas, que nem mesmo eu lembrava que ainda as tinham.

(...)

Se tinha algo que marcava meu pai era o seu olhar. Durante o meu crescimento sempre apaguei para saber distinguir o que é o certo e o errado. O que pode e o que não pode. O sim e o não. Na verdade, não sei se aprendi, só sei que apanhei. Minha mãe me batia sempre de cinto. Era uma dor... principalmente quando a fivela do cinto batia na minha carne. Ficava a marca da dor, mas logo depois passava. Já meu pai, nunca encostou a mão em mim. Ele apenas me olhava de canto de olho. Se eu sentia dor? Não... eu já estava morta de vergonha. Aquele olhar me matava, eu morria de medo. Era profundo demais e muito forte pra aguentar. Ele batia na minha alma, e demorava muito para cicatrizar.

Se tem algo que me faz tremer é um olhar. Se tem algo que me faz aprender é um olhar forte. Se tem algo que jamais esquecerei é o olhar de meu pai, aquele olhar de canto de olho, meio atravessado.

A natureza dá sinais. O olhar é o início de tudo. Esse é o sopro da vida. E torna-se eterno quando os olhos se fecham.

(...)

Hoje, em frente ao mar, recordei-me de algumas palavras que escutei um amigo falar. Discursamos sobre o que era o mar e/ou como ele é, como se comportava. Ele, já um senhor de idade, dizia que o mar não faz nada, só dá onda. E insistia, observe, ele só dá onda, todos os dias... onda pra lá, onda pra cá... onda, onda e onda.

Pensei, como pode alguém julgar o mar só por ter visto o que ele faz durante aquele tempo. Sem nem ao menos saber porque ele "dá onda". Presumo que esse conceito antecipado sobre "o que o mar faz", associado à inteligência humana, me faz recordar a frase famosa de Sócrates "só sei que nada sei". Seria essa nossa própria ignorância que nos cega para vida?

A onda, a água salgada, a cor, o horizonte, o barulho do mar são mistérios da natureza. Desculpe-me, a minha santa ignorância! Mas resolvi mergulhar pra conhecer melhor o mar.

(...)

Jogos de cartas não faziam mais parte de minha vida, apenas de mais uma das minhas poucas, raras e preciosas lembranças. Voltei a jogar. Voltei a lembrar. Esse jogo faz partes das minhas lembranças mais íntimas com minha avó, mãe do meu pai. Ao fechar os olhos, quase consigo ver, como se eles ainda estivessem abertos... minha avó sentada numa mesa redonda jogando buraco. Jogo pouco. Quase nunca. Mas jogo bem. Ganhei alguns jogos, e perdi uns também. Recordei-me que tenho amor também às cartas. Todavia, elas ainda continuam sobre à mesa dependendo umas das outras.

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